Jorge Araujo
Houve época em que as quartas-feiras-de-cinzas serviam como cauta abertura de uma temporada de reflexões. Alguns dos mais antigos eram despertados dos excessos do carne vale, emergindo do torpor revigorados pela expiação de culpas e reorientação de caminhos. Até os primeiros anos da década de 80 do século passado, lembro-me que a quarta de cinzas era data de anúncios frementes de aumento de um-quase-tudo que dobrava o amargor dos pós-foliões: taxas, custos, serviços, feiras, supermercados, o infinito das possibilidades, com a óbvia exceção de qualquer nesga de reajuste nos já magros salários.
Hoje a toada aparenta ser outra, mas a esperança permanece vergando ao peso insuportável do desfalecimento. O imposto de renda mostra suas garras de felino, rei voraz e insatisfeito da floresta de equívocos que há tempos nos devora, deglute e expele, desterrando-nos como trastes sem quaisquer resquícios de direitos de cidadania. Em uma nação de espoliados, o raciocínio parece próximo do que pensava o montador de diálogos no filme Spartacus, baseado em brilhante roteiro de Dalton Trumbo: Em Roma, a dignidade encurta a vida mais que a doença. Decatributado, o país da escorcha legitimada pela paralisia nas vocações públicas (que festeja montantes de arrecadação como se festejasse orgasmos múltiplos e sucessivos) continua trilhando a saga de um Robin Hood às avessas: tira dos assalariados o que nem sequer cogita em tributar dos ricos ofícios de fortunas, empresas, bancos e mais a caterva de sonegadores dos mais distintos e elegantes naipes. E o mais grave na associação desses malefícios é que perdemos completamente a embocadura de qualquer vislumbre de argumentação protestativa.
Em tal contexto de acomodação de camadas, nada perturba a paz dos pântanos. Produz-se em torno do éter nada menos que dez mitos a cada safra de imobilismos. Nenhum sinal de luz ou eco nos vem do fundo das cloacas. E assim singra o mar de amenas virtudes no paraíso das exclusões auto-conformadas. Na próspera São Paulo ora considerada obesa de nordestinos — os egressos de um famélico Nordeste, em tudo semelhantes àqueles que a ergueram em concreto e mármore —, o governo do município tem como política opcional para os pobres repatriar os inflados cabeças-chatas para os seus chãos de origem. O modelo de eugenia, limpa e eficaz como a transparência dos esgotos, promete passagens e moeda sonante (5 mil reais para famílias com muitos filhos, soma decrescendo de acordo com a implosão demográfica). Argumentam que a irresponsabilidade das formas anatômicas dos miseráveis infestando os Jardins só será coibida com a coragem civil de felizes homens públicos com vocação e experiência da privada.
Que relação pode ter o imposto de renda com os pobres nordestinados na Paulicéia? Desvairada resposta, caríssimo leitor, dilatadíssima leitora. Talvez a mesma ausência de respostas que acomete governos (de todos os níveis) sem qualquer vínculo com excluídos, assalariados, despojados de direitos, sequer o de sonhar com uma vida humana mais digna. Ao final desse repertório de angústias, restaure-se o primado de novas quartas-feiras de cinzas. Afinal, daqui até dezembro pipocarão festejos nos diversos quadrantes do país. Para esquentar a temperatura do circo, mesmo sem ter pão para acompanhar a festa.
Jorge de Souza Araujo é poeta, ficcionista, ensaísta e dramaturgo, mestre e doutor em Literatura Brasileira pela UFRJ, Professor Adjunto da UEFS, tem 35 livros publicados