Por Janaina Silveira

Cânticos das Criaturas é uma obra cujo roteiro e direção é do cineasta Adroaldo Almeida e produção de Mariana Almeida, incentivado recursos da Lei Paulo Gustavo.

Antes de qualquer coisa é preciso dizer que Cânticos das Criaturas é um filme inteligente com uma proposta desafiadora e impactante. Um filme que incomoda. Realmente incomoda. Primeiro por sua curtíssima duração, apenas 12 minutos; segundo por ser um filme que não faz uso da língua falada.

Uma produção eminentemente filosófica, apoiada na subjetividade para dizer tudo sem, na verdade, dizer absolutamente nada.
A trama ocorre num carnaval que, dentre tantos carnavais do Brasil afora, reúne pessoas de todos os jeitos e tipos nos mais diversos locais festivos.

No caso de Cânticos das Criaturas, o local é o bar, mas não qualquer bar; um boteco numa periferia de algum lugar do Brasil que tem na sua clientela a perfeita representação da população brasileira: uma gente diversa heterogênea e desigual.

A marca da diversidade atravessa também o repertório musical inserido no filme que inicia com uma ópera, é atravessado pelo funk e por músicas típicas do carnaval baiano, finalizando com uma MPB.
O cenário aduz a folia carnavalesca nos trajes e adereços das personagens que tornam-se ainda mais atraentes com a iluminação que permite ao telespectador sentir-se dentro da cena, sentado à mesa desse bar, tomando uma cerveja com as personagens.

E quantas histórias cabem dentro da história de Cânticos das Criaturas? Cada personagem que aparentemente apenas dança, bebe e curte a folia carnavalesca é um mundo em si e carrega significados múltiplos em sua representação. Cada ser ali é um indivíduo único, singular, com vidas únicas e singulares.

O homem preto que toca sanfona, o branco que toca flauta, o outro branco tocando violão, e ainda mais um tocando saxofone, o moreno tocando percussão, o cabeludo grisalho dançando com a loira com traje brilhante.

O jovem casal heterossexual aos beijos, o rapaz trans e a moça cis se curtindo também , o saxofonista e sua esposa paquerando o rapaz que está com a namorada na mesa ao lado.

O homem gay bebendo e dançando feliz junto aos homens e mulheres heterossexuais. As mulheres com pouca roupa dançando felizes. O dono do bar sozinho refletindo no balcão ao final do carnaval.

Uma cena absolutamente comum, de um carnaval comum, de qualquer cidade comum desse nosso país. E o que há de inovador nessa obra, então? O fato de ser comum faz desse filme uma obra particular quando, sem falas, as personagens apresentam a diversidade do povo brasileiro – um povo que pula carnaval e que luta para sobreviver numa sociedade classista porque capitalista.

O diferencial de Cânticos das Criaturas é que este filme fala sem que seja necessário verbalizar porque os corpos das personagens gritam, o figurino diz, o cenário fala, o repertório musical fala, os focos e cortes cenográficos falam.

E diante de tantas falas, verbalizar tornou-se desnecessário, mas, jamais, desimportante. Há muito texto e muito contexto em Cânticos das Criaturas cuja exploração renderia muito mais do que os 12 minutos inteligentemente apresentados.

Uma obra inquietante, sedutora, multifacetada, instigante que merece continuidade e que deixa a ideia de que qualquer desdobramento ainda não dará conta de abordar toda a riqueza de textos e contextos que o filme apresenta a partir da diversidade representada nas e pelas diversas personagens.

É uma obra recomendada aos curiosos; letrados ou não, consumidores de arte ou não, que professam alguma fé ou não, homens ou mulheres das mais diferentes idades, classes sociais, orientações sexuais, raças e credos. É uma obra que interessa e ponto. E se uma pessoa curiosa, mas verdadeiramente curiosa, acessá-la, entenderá o porquê de essa obra ser tão intrigante, eminentemente filosófica e isso porque o que é a verdadeira filosofia se não for uma profunda curiosidade de tudo e de todas as coisas?

Janaina SilveiraProfessora, Pedagoga, Mestra em Educação