A mulher que lutava na Justiça para garantir a interrupção de uma gestação incompatível com a vida, enfim, teve seu direito efetivado. A Segunda Câmara Criminal do Tribunal de Justiça da Bahia (TJ-BA) reverteu a decisão da primeira instância e autorizou o procedimento, que foi realizado no último final de semana.
A Defensoria Pública da Bahia (DPE/BA) buscava a efetivação do direito ao aborto desde julho e, apesar de laudos médicos apontarem que não havia chances de vida extrauterina, a interrupção tinha sido negada.
Para a coordenadora da Especializada de Direitos Humanos e do Núcleo de Defesa das Mulheres, Lívia Almeida, a decisão veio com um pouco de atraso para para a gestante, mas tem um peso histórico. “É uma decisão muito bem fundamentada, abordou vários pontos importantíssimos, como Estado Laico e direito à saúde mental. Não é justo submeter uma mulher a algo tão cruel como gestar e parir um filho para depois enterrá-lo. Espero que ela pavimente um caminho menos doloroso para as próximas que vierem”, destacou a defensora pública.
Em decisão unânime proferida no último dia 29 de agosto, a Segunda Câmara reconheceu os riscos psíquicos – desconsiderados no parecer no Núcleo de Apoio Técnico do Poder Judiciário (Nat-Jus) – da imposição de uma gestação sem chances de vida. “O risco à saúde da gestante não se vincula tão somente à higidez física, perpassando, também, por óbvio, pela saúde mental consubstanciada na imposição à mulher de manutenção da gravidez, contra sua vontade, mesmo diante de diagnóstico da inviabilidade de vida extra-uterina”, afirma a decisão.
Para Lívia Almeida, o tempo de espera até a realização do procedimento intensificou o sofrimento vivido pela gestante. “Ela teve que enfrentar um processo muito doloroso. Foram muitos dias esperando, dias de angústia, medo, dor, ansiedade, tristeza”, avalia a defensora pública.
Outro ponto ressaltado pela Segunda Câmara é de que os pareceres e notas técnicas emitidos pelo Nat-Jus não possuem caráter vinculante. De acordo com a decisão, o órgão tem caráter consultivo e parecer contrário não pode se sobrepor “de maneira absoluta e inconteste à estratégia terapêutica indicada pelos(as) médicos(as) responsáveis pela Impetrante que,
impende destacar, acompanham a sua gestação desde o começo e, consequentemente o desenvolvimento do quadro de saúde fetal e gestacional em comento”.
Mesmo com exames médicos apontando a incompatibilidade do feto com a vida, a realização do aborto foi impedida na primeira instância com base nos pareceres do Nat-Jus e do Ministério Público da Bahia (MP-BA). Ambos divergiram dos laudos médicos e afirmaram “ausência ou divergência de elementos técnicos que justifiquem a realização”. Com isso, foram pedidos novos exames.
Residente em um município do interior do estado, a mulher foi encaminhada à DPE/BA com diagnóstico de feto com pulmões, rins e o coração comprometidos, além de ausência de líquido amniótico. Nos exames realizados após pedido da Justiça, foi reforçado que o feto era “incompatível com a vida extrauterina e não há necessidade de diagnóstico genético, pois o exame ultrassonográfico é definitivo, chegando à mortalidade neonatal de 90-95%”.
A Defensoria também pediu o parecer de um médico especialista em medicina fetal, e a resposta foi que o feto sofre de insuficiência renal crônica irreversível. O documento anexado ao processo afirma ainda que o feto possuía “hipoplasia pulmonar devido a ausência do líquido amniótico”. “Nesse período, a ausência de líquido amniótico impossibilita o desenvolvimento alveolar adequado e, consequentemente, as trocas gasosas após o nascimento.”
A gestante foi encaminhada à DPE/BA para efetivar o direito ao aborto com 22 semanas de gestação. No entanto, a decisão que garantiu a realização do procedimento só foi proferida quando a gravidez já estava, aproximadamente, na 27ª semana. O tempo médio entre o recebimento, ajuizamento e autorização judicial de casos da mesma natureza recepcionados pelo Núcleo de Defesa das Mulheres (Nudem), é de uma semana.
Entre 2022 e maio deste ano, o Nudem recepcionou 73 casos de diagnóstico de gestação incompatível com a vida não previsto no ordenamento jurídico. A maioria dos casos (57,5%) chega à instituição com, pelo menos, 20 semanas de gravidez (57,5%) e são de mulheres residentes em municípios do interior (56,1%). Os dados são do observatório de atendimento para interrupção de gestações com malformação fetal incompatível com a vida extrauterina do Nudem.
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