Por Walmir Rosário
Há muito se transformou em verdade todas as estórias contadas sobre o goleiro e a área que ocupa em campo, e nem mais se discute se mito ou verdade, pois já estão encravadas na memória do torcedor. É muito sacrifício para alguma remota chance de reconhecimento desses nem tão gloriosos jogadores, que em uma só partida de futebol podem empreender um voo do céu ao inferno em poucos segundos.
Se realmente é uma posição maldita não posso provar, me faltam argumentos científicos, embora restem aquelas conversas por ouvir dizer, empíricas e bisonhas, cuja a verdade é largamente escamoteada. E a primeira delas é que na área em que o goleiro pisa não nasce grama e chega a ser comparada popularmente com o local em que as éguas fazem xixi. Dizem que queima a grama. Os biólogos e botânicos que expliquem.
Dos grandes goleiros que conhecemos os dissabores passados por eles são terríveis, que o diga o do Vasco da Gama e da Seleção Brasileira da copa de 1950, Barbosa. Pagou um preço altíssimo por uma mercadoria que não recebeu. Outro grande do Fluminense e da seleção canarinha, Castilho, chamado de Leiteria, pediu ao médico para amputar um dedo e continuar jogando futebol. E fez isso com a maior tranquilidade que Deus lhe deu.
Manga, do Sport, Botafogo, Seleção Brasileira, Internacional, Operário-MS, Coritiba, Grêmio, Nacional do Uruguai, Barcelona de Guayaquil, é um capítulo a parte a ser estudado. Em todas as duas mãos os dedos são tortos, já que quebrados, mandava tirar o gesso para jogar partidas consideradas importantes com a maior naturalidade do mundo. E está aí para quem quiser ver.
Voltando aqui pra dentro de casa, em Itabuna, tivemos goleiros magistrais, como Asclepíades, Carlito, Plínio, Ivanildo, Luiz Carlos, Tirson, Padre, Pires, Laércio, dentre outros que a memória não alcança agora. Mas não podemos esquecer de Betinho, que jogou no Itabuna, foi levado por Pelé para o Santos, poderia ter chegado à Seleção Brasileira de 1970, e não conseguiu se manter na carreira por preferir as homéricas farras.
E aqui poderia gastar muito mais tinta para enumerar os conhecidos arqueiros, que conseguiram chegar ao êxtase, mas que também experimentaram o sofrimento e a tristeza. Existe cena mais degradante que um goleiro sofrer um gol e ter que pegar a bola nos fundos da rede e entregá-la para que o jogo recomece? Pior, ainda, são as comemorações dos adversários, tudo cara a cara. Mesmo que salve um pênalti depois não alcançará honras maiores.
Como diz o ditado popular, araruta também tem seus dias de mingau. Em 1960/61 jogavam o Janízaros e Botafogo pelo Campeonato de Amadores de Itabuna. E não era um jogo qualquer, pois o Botafogo precisava da vitória e o Janízaros do empate para chegarem às finais do Campeonato do Cinquentenário da cidade. Todos queriam vencer e se classificar para a finalíssima do certame mais importante dos 50 anos de Itabuna.
Como a situação era diferente entre as duas equipes, o Botafogo lutaria para ganhar e ao Janízaros interessaria o empate para disputar com Fluminense, já devidamente classificado e que assistia tudo de camarote. Um dos diretores do Janízaros, Hemetério Moreira, nem quis assistir ao jogo e viajou para Salvador com receio do coração disparar durante a partida. Preferiu não ver a partida.
Perto da final do segundo tempo, o árbitro marca um pênalti contra o Janízaros. Uma ducha de água gelada para os atletas do Janízaros, que sequer questionaram a penalidade máxima. E nesse silêncio ensurdecedor, o goleiro do Janízaros, Antônio Pires, ouve uma voz gritar: “Ninguém mexe na bola, essa é minha, deixa comigo”, era o centroavante Danielzão, um dos mais potentes chutes de Itabuna.
Danielzão pega a bola com as mãos, coloca-a em frente ao seu rosto, e lança um olhar demorado sobre a pelota. Em seguida, descortina um olhar penetrante para o goleiro Pires. E os dois olhares se cruzam por alguns instantes. Nisso Danielzão cospe na bola, volta a fitá-la, e lentamente coloca a pelota na marca do pênalti, sobre o olhar rigoroso do árbitro. Em baixo dos três paus Pires observa a tudo com bastante atenção.
Para surpresa das torcidas do Janízaros e Botafogo, Danielzão recua até próximo do meio de campo, e ao ouvir o silvo do apito do árbitro, o vigoroso centroavante inicia uma corrida em direção da bola e a chuta. Ela viaja a boa altura ao lado esquerdo do goleiro. A bola dispara tal e qual um tiro de canhão, como se tivesse a finalidade de furar a rede. Quando menos se espera, Pires salta com os dois punhos cerrados em frente a cabeça e bate na bola. Eis que ela desvia tocando na trave e tomando o caminho da linha de fundo.
Pires salva a pátria e Danielzão não acredita no que vê, nunca perdeu um gol daquele. A torcida do Botafogo silencia, enquanto a do Janízaros comemora como se tivesse feito o gol da vitória. Em outras palavras, sim, era o passaporte para a final frente ao Fluminense. No dia seguinte, Hemetério Moreira chega de Salvador e passa na casa de Pires, em Itajuípe, com um saco cheio de cédulas de cruzeiros. E ele nem contou. Era o bicho por ter garantido vaga na final.
No próximo domingo seria dia de decisão. O Janízaros voltaria a campo para disputar o título do centenário contra o Fluminense. Mas aí é outra história.
* Walmir Rosário é Radialista, jornalista e advogado