Domingos Matos
O México talvez seja, ao lado da Rússia, o principal exemplo da radicalização do crime organizado, ao ponto de torná-lo quase endêmico e, aos olhos de quem está de fora, totalmente institucionalizado nas entranhas do país. Deve haver outros, mas esses são os exemplos que nos vêm à mente agora. Para ficar no mais próximo, inclusive culturalmente, falemos do caso México: os cartéis do tráfico tomaram conta de boa parte do território, o que significa dizer que avançam, como o crime organizado faz em qualquer lugar, sobre o setor público, corrompendo autoridades, assumindo o papel do Estado, seduzindo hordas de crianças e mulheres – os homens são os primeiros a cair em suas garras – e formando seu exército paralelo. O Brasil está nesse caminho, e se destaca com louvor.
Mas, o que seria o crime institucionalizado? Quem se lembra do episódio protagonizado em São Paulo pelo grupo denominado Primeiro Comando da Capital (PCC), em 2006, entende o que é e o poder de fogo do crime organizado e institucionalizado. Naquele ano, a partir de um presídio, ataques coordenados desestabilizaram todo o sistema policial daquele estado, chegando a refletir em diversos outros – na Bahia, Itabuna foi uma das cidades em que ônibus foram queimados.
Também naquele ano, descobrimos que o PCC estava dando um salto em direção ao verdadeiro crime institucionalizado: em vez de gastar dinheiro corrompendo representantes do sistema, passou a financiar os estudos de jovens valores para torná-los advogados, juízes, promotores e outras autoridades que trabalhariam a seu serviço. Pelo tempo em que a prática foi implantada, é fácil deduzir que muitos desses doutores do crime já estão em plena atuação pelo país afora.
No México, conta-se às dezenas o número de prefeitos e outros políticos que as gangues matam ao ano, além de demais autoridades que se interponham em seus caminhos. Aqui, juízes estão sob ameaça e a categoria se vê assustada após o assassinato de uma magistrada no Rio de Janeiro, executada porque combatia o crime institucionalizado dentro das forças policiais. Mas, engana-se quem imagina que coisas desse tipo só acontecem em cidades como Rio e São Paulo. Acostumamo-nos a esse pensamento por tê-las como as metrópoles onde tudo é ‘normal’, de tudo acontece. Como dizia um ditado dos anos 80: “é onde filho chora e mãe não vê”.
A realidade hoje é outra. Cidades como Itabuna estão invertendo essa sentença: aqui, ou em qualquer parte do país, ‘mãe chora e filho não vê’, porque já está morto. O crime organizado matou, de um jeito ou de outro. Alguns exemplos de crimes institucionalizados nos dão a certeza de que, com a contribuição de cidades como Itabuna, o Brasil corre a passadas largas, para uma mexicanização completa.
Vejam o caso da própria Itabuna. Há cerca de um mês, um homem foi assassinado em frente a um posto de combustíveis no centro da cidade. Passado o choque, as informações. Era o motorista que levava da fonte ao destino a maioria dos veículos roubados na cidade e na região. Havia sido preso três dias antes e foi solto a cerca de 72 horas de seu encontro com a morte.
Investiga-se um pouco mais e chega-se à constatação óbvia: fazia parte de uma rede enorme de roubo de carros, foi executado porque, ao ser preso, virou um arquivo. Como pagou fiança e saiu, quem garantia que não seria seguido pela polícia e entregaria todo o esquema de bandeja? Vendo por outro viés: quem garante que não levaria a gente graúda, que financia o roubo desses carros, dá proteção aos operários e lucra com a revenda do produto? Quem também garante que essa vertente do crime institucionalizado está totalmente dissociada da que opera o tráfico de drogas no atacado no município? Aliás, o que foi feito a partir da descoberta de que, no bairro Nova Itabuna, há um local acima de qualquer suspeita que abriga um cemitério de carros roubados e ali depenados?
Mas o crime institucionalizado não nasce e não morre aí, senhores. Esse é o ponto intermediário, aquele em que até se permite a descoberta de um ou outro esquema. Chamo de o “estágio da estabilidade relativa”. Sua origem é incerta. Alguém consegue estabelecer se ele nasce no ninho da águia, na mais alta das copas, ou se nas entranhas da terra, em ninhadas de bichos que rastejam? Para mim, é tão fácil crer que o exemplo de nossos políticos, que desviam milhões de reais da saúde pública, serve de estímulo às pessoas simples a também se corromperem, quanto acreditar que tudo vem da base: o menino que vê o pai não devolver o troco a mais na padaria e toma isso como exemplo tem grande potencial para se transformar em um chefe de gangue no bairro ou em um vereador, prefeito ou deputado corruptos.
Como na Grécia antiga, ele pode nascer na tragédia. Como na história contemporânea, ele pode vir do drama. Aqui, “tragédia” é o conjunto de dificuldades que fazem com que só o mais forte sobreviva. Por falta de um anticoncepcional ou de planejamento, a mãe tomou chá amargo, mas não perdeu o bebê. Nasceu em falta de tudo. Teve que roubar o lanche do coleguinha, depois o lápis, depois o celular, o tênis. Acabou roubando a vida. Mas sobreviveu. Já o “drama” é representado pela nossa política. Vemos de tudo, político que cai em desgraça num dia, que é julgado no outro, mas que sempre encontra seu final feliz. Drama autêntico. Na Grécia antiga, o drama acabou por matar a tragédia como expressão artística. Aqui, ainda brigam, mas pela paternidade do maior mal do país, o crime generalizado e institucionalizado.
O que se percebe é que, nas mais altas ou nas mais baixas castas da sociedade, o crime foi institucionalizado e banalizado. Dia desses, paciente que passava a noite na fila do Posto de Saúde do bairro Califórnia, depois de ter sido o primeiro a chegar, lá pelas 19 horas, viu um sujeito entrar em sua frente, com o dia quase amanhecendo. Achando que seria apenas um folgado, interpelou-o: “moço, esse lugar é meu, cheguei aqui ontem à noite”. O sujeito pouco falou. Foi em casa, ali nas proximidades, e voltou armado. Algum tempo depois, pegou a ficha número um. As pessoas da fila achavam que era um viciado, um nóia, que estaria marcando o lugar para alguém, mas era um dos líderes do tráfico.
Na mesma zona, alguém com trânsito nos meios políticos retém em seu poder dezenas de autorizações para procedimentos médicos na rede pública, e as vende ou as dá, de acordo com o grau de amizade com ‘seus’ pacientes ou com seus próprios interesses, inclusive políticos. Do outro lado da cidade, funcionário público exige propina para facilitar a retirada de um documento de veículo, uma carteira de habilitação. Nos hospitais, técnicos operam em benefício próprio aparelhos de última geração para exames sofisticados, caríssimos e inacessíveis aos pacientes da fila do posto de saúde do Califórnia. Basta pagar um por fora.
Na política, a Câmara de Vereadores está sob investigação da polícia federal, que busca desvendar um dos maiores esquemas de desvio de dinheiro público dos últimos anos. Tudo já detectado por uma investigação interna e, depois, por uma auditoria externa. Perguntado por que não se abre um processo de cassação contra os acusados, uma autoridade responde: “Como fazer isso, se praticamente todos ali se beneficiaram do esquema?”. Na prefeitura, a coisa flui de um simples desvio de material para construção da casa de praia de um pobre coitado até esquemas inconfessáveis, que visariam à privatização da Emasa.
É quase parte da cultura. Mas, no fim, o que choca é o fato de não encontrarmos guarida onde seria nosso último refúgio, as leis e o Judiciário. Não esqueçamos que temos exemplos de juízes que se aposentaram compulsoriamente para fugir de investigações, escrivã que é presa (injustamente?) acusada de formação de quadrilha e advogados que agem como mulas do tráfico de influência até junto às cortes superiores. Mais institucional que isso, impossível. Parece que tudo virou uma grande quadrilha, e o que se salvam são as exceções.
Felizmente, essas existem e são maioria, embora não pareça.
Domingos Matos é jornalista e blogueiro, editor do blog O Trombone e do jornal Agora