Adylson Machado
A Corte Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA) condenou o Brasil por não apurar o desaparecimento de militantes da Guerrilha do Araguaia – o que, em tese, se estende a presos políticos sacrificados nos porões da ditadura (“ditabranda” para a Folha de São Paulo) – tudo originado no exercício do terrorismo de Estado como instrumento de repressão política.
Faz reabrir, em grande estilo, a discussão de conteúdo jurídico que o Supremo Tribunal Federal se recusou a avaliar: se crimes contra a humanidade são alcançados por anistia política, ou seja, se a tortura, o sequestro e o homicídio praticados por agentes do Estado podem ser igualados a crimes políticos.
Outros países da America Latina têm enfrentado o tema, à frente a Argentina e o Chile. O Peru, o Paraguai, a Bolívia e o Uruguai na mesma esteira. No caso do Brasil, a acomodação capitaneada pelo STF violou a Convenção Americana de Direitos Humanos, da qual o País é signatário, e nos faz conviver com conceitualidades que mais se aproximam de monstruosa teratologia (a redundância se impõe), ainda que não caiba aqui comentar sobre a força de tratados referendados pelo Congresso, outorgados de eficácia supranacional, o que significa dizer: devem ser cumpridos.
A dura resposta da Corte da OEA é um alerta de que para sermos reconhecidos como verdadeiro Estado de Direito não podemos nos acovardar de discutir o passado, sob pena de maquiar a História e negar lições claras para as futuras gerações. No fundo, a decisão constrange a Corte Suprema do Brasil, que tratou o tema como se fosse mais um habeas corpus a Daniel Dantas – sob a égide da conveniência.
Sai arranhada a própria imagem de estadista construída pelo Presidente Lula no concerto internacional. Afinal, difícil entender que o mesmo Presidente da República que defende o reconhecimento de um Estado Palestino com fronteiras anteriores a 1967, que media soluções para conflitos entre povos, que legou ao Mundo aplaudida política de combate à fome e à miséria, que estabeleceu novos paradigmas nas relações internacionais para África e America Latina, inserindo-os nas futuras discussões globais, tenha o seu Advogado-Geral da União na defesa de uma lei esdrúxula, seja-o no plano formal, seja-o no moral.
Legitimar uma lei de anistia controlada pelo poder ditatorial que interferia inclusive na composição congressual – através da cassação de mandatos e nomeação de um terço do Senado – é negar a essência da representação popular e assegurar ao pescoço o tratamento de corda.
Em nenhum instante faríamos apologia à violência. Para todos a isonomia da lei, assim reza a cartilha de qualquer Estado Democrático de Direito. A esse propósito, os que sobreviveram à luta armada, por enfrentar a ditadura quando faleceu a intervenção política, responderam a processos e cumpriram penas de prisão. O que não se defende é a indefensável tese de que o Estado exercite o seqüestro, o estupro e a tortura contra opositores.
Quando se fala de grupos políticos que encontraram na clandestinidade a única forma de luta contra a usurpação da ordem democrática, duramente combatidos, não podemos esquecer os que, na condição de agentes do Estado, prenderam e torturaram e fizeram o tétrico terrorismo de Estado, que ia desde empastelamento de jornais (Tribuna da Imprensa), explosão de bancas de revista a cartas-bomba contra a OAB, ou tentativas de massacre como ocorreria no Riocentro se a bomba não estourasse no colo do militar ou se não houvesse a coragem cívica de um capitão aviador, Sérgio Ribeiro Miranda de Carvalho, o Sérgio “Macaco”, do PARASAR, que não aceitou explodir o gasômetro do Rio de Janeiro, ação terrorista proposta pelo General Burnier, onde morreriam milhares a fim de que fosse ofertado o álibi para o endurecimento do regime nos idos de 1968.
Razão por que temos que os que insistem em “apagar” a triste história recente, fomentando a ideia de que a punição aos que cometeram crimes contra a humanidade nos porões da ditadura atinge as Forças Armadas, buscam, simplesmente, um álibi para proteger os que macularam Exército, Marinha e Aeronáutica e utilizaram, com apoio de parcela da sociedade civil – empresários e parte da imprensa – de suas instalações oficiais para agredir quem estava sob a tutela do próprio Estado.
Essa verdade precisa ser reconhecida: o aparelho a que competia defesa das instituições se viu altamente atingido e prejudicado pela nefanda ação dos que abusaram da condição de agentes do Estado para agir à sombra da lei e da ordem democrática. Impõe-se, para as futuras gerações, que tenham conhecimento de que esse absurdo aconteceu.
A decisão da Corte da OEA condenando o Brasil é uma lição ao próprio Supremo Tribunal Federal, acovardado, fugindo do seu dever de guardião das instituições jurídicas.
Mas para edificar a História real, filtrando fatos a serem evitados e como registro do passado lecionando para o futuro, o mínimo que se pode esperar e exigir é o exercício do direito à verdade e à memória.
Que o Supremo Tribunal Federal negou reconhecer e por causa disso acaba de receber um pito da Corte Interamericana de Defesa dos Direitos Humanos da OEA.
Adylson Machado é escritor, professor e advogado, autor de “Amendoeiras de outono” e ” O ABC do Cabôco”, editados pela Via Litterarum